Entre tatuagens, o Norte e o vinil
A agulha que marca, aponta e reproduz
A Entrada desta leitura-exposição assemelha-se a um palheiro.
Há palha por todo o lado, mas vemos também um foco de luz a incidir sobre um objeto reluzente. Uma agulha dourada.
Ali, acessível. Já encontrada no meio do feno e, agora, em grande destaque.
A expressão “procurar uma agulha num palheiro” costuma indicar a dificuldade de encontrar algo - uma tarefa quase impossível.
Hoje, a agulha não está escondida. Está exposta e pronta a ser vista à lupa, com três lentes diferentes.
Normalmente, a agulha é um objeto refém de uma monoleitura - a do universo da costura. Por isso, esta exposição convida-nos a explorar outros olhares.
Vamos visitar a primeira sala?
SALA 1 » Agulha que marca a pele (e a memória)
Entre 1941 e 1945, mais de 400 mil prisioneiros foram marcados no antebraço esquerdo em Auschwitz.
Um carimbo metálico de múltiplas agulhas tatuava números e apagava nomes.
Auschwitz foi o único campo nazi a tatuar prisioneiros. No entanto, receber um número significava, antes de mais, ter sobrevivido à chegada.
A maioria das pessoas deportadas - cerca de um milhão - nunca chegou a ser registada.
Para quem ficou, a tatuagem tornou-se símbolo duplo: prova do que aconteceu e lembrança indelével. Alguns sobreviventes cobriram os números; outros mantiveram-nos visíveis.
Décadas mais tarde, houve quem tatuasse flores sobre os números para reescrever o seu significado e netos tatuaram os números dos avós nos próprios braços, num gesto de solidariedade e recusa do esquecimento.
🪡 Se pudesses apagar uma memória dolorosa, seria algo que farias?
🪡 Conheces alguém que transformou uma ferida (no sentido literal ou metafórico) em símbolo de sobrevivência/superação?
🪡 Em que situações da tua vida viste a mesma coisa (uma marca, um objeto, uma característica) servir opressão e libertação?
Saímos da Sala 1, em que a agulha marcava dolorosamente a pele, e aproximamo-nos da Sala 2, onde a agulha passa a ser orientação.
SALA 2 » Agulha que aponta o Norte (e novos rumos)
A ideia de busca de orientação atravessa a História (e muitas das nossas histórias) e é curioso verificar como a agulha magnética dá, tantas vezes, concretude a esse abstrato.
Pequena e sensível ao campo à sua volta, tornou-se metáfora do que procuramos quando tentamos perceber para onde queremos ir. (Ninguém quer estar/sentir-se perdido, não é?)
Tal como as aves migratórias, que se orientam pelos campos magnéticos, nós também respondemos a sinais internos que nos guiam através da incerteza. Rebecca Solnit escreve que aprender a usar a bússola implica aceitar a oscilação inicial da agulha.
A hesitação faz parte do processo e é nesse intervalo entre a dúvida e o alinhamento que aprendemos a escutar o nosso pássaro da alma (fazendo referência ao livro de Michal Snunit).
🪡 Tens um “norte” claro na tua vida? Ou vários?
🪡 Em momentos decisivos, confias mais em sistemas externos ou na “agulha” da tua intuição?
🪡 Será que perdemos o norte ou perdemos apenas o silêncio necessário para perceber em que direção a agulha apontaria sem tantos ímanes à nossa volta?
Da agulha que aponta direção, passamos agora à agulha que decifra o invisível.
SALA 3 » Agulha que reproduz música (e mundos)
No gira-discos, a agulha faz algo extraordinário: decifra. Desliza sobre sulcos invisíveis e transforma vibrações físicas em som. Sem a agulha, o disco seria mudo.
No entanto, quando a agulha envelhece, se desalinha ou se desgasta, produz ruído, o som distorce.
O mesmo acontece connosco: vieses, cansaço, distrações. Tudo pode distorcer a nossa percepção do mundo, tornando o familiar estranho e o invisível inaudível.
E talvez porque somos simultaneamente agulha e sulco.
— Agulha, quando interpretamos gestos, sinais, situações.
— Sulco, quando armazenamos memórias, emoções, histórias.
Se perdemos de vista a agulha, torna-se mais difícil navegar nestas águas...
🪡 Que histórias a tua “agulha” resiste ler?
🪡 Em que momentos te sentes mais sulco (a guardar experiências) ou mais agulha (a decifrar o mundo)?
🪡 Que “música” tens deixado entrar na tua vida e como é que ela molda a maneira como vês o mundo?
O que levamos desta exposição?
À Saída, lê-se:
Três agulhas. Três leituras. O mesmo objeto.
1. A agulha-tatuadora
Há marcas que não foram voluntárias e que, ainda assim, podem ser reescritas com o tempo. Não no sentido de apagar o que aconteceu, mas para transformar o que significam. A mesma ferramenta que serviu a opressão, pode servir a resistência.
2. A agulha-bússola
Oscila, hesita, procura. Responde a forças que não vemos, move-se em direção a algo que também se move. Lembra-nos que a orientação, mais do que certezas, é sobre escuta interna assídua.
3. A agulha-vinil
Desliza sobre sulcos invisíveis e devolve-lhes voz. Lembra-nos que somos, ao mesmo tempo, agulha e sulco - ora lemos o mundo, ora deixamos que ele nos leia. Perder de vista a agulha é perder acesso ao que está gravado.
Um convite antes da despedida
Este é o sétimo texto da série leituras-exposição e cada edição transforma um objeto do quotidiano numa experiência multidisciplinar de leitura e reflexão.
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Ajudas-me a abrir as portas desta exposição a mais pessoas? :)
Leituras-exposição, uma série especial do Plano de Fuga
Esta série reúne textos que nos convidam a refletir de forma multidisciplinar sobre objetos do nosso quotidiano. Pequenas coisas que carregam histórias, memórias e camadas implícitas.
Cada leitura-exposição oferece três salas, três lentes, três modos de ver o mesmo objeto. As edições anteriores tiveram como protagonistas a borracha, o dicionário, o pente, o prato, a tesoura e a almofada.








