Sonhos, sono e confidências
Numa só almofada
Há objetos que habitam tão silenciosamente o nosso quotidiano, que podem passar despercebidos.
A almofada é um deles: companheira de cerca de um terço das nossas vidas (o tempo que, em média, passamos a dormir) e testemunha de vulnerabilidades dizemos não ter.
A palavra vem do árabe al-mukhádda (“o que se põe na face”) e, durante séculos, foi um objeto de luxo e … duro.
Tratava-se de um suporte rijo para a cabeça, usado para preservar, durante mais tempo, os penteados. Acreditava-se que os materiais frios (tal como a pedra jade, no caso dos imperadores chineses), ofereciam benefícios para a saúde e até longevidade.
É curioso pensar que a almofada macia e de uso generalizado (independentemente da riqueza ou estatuto social de quem a usa) é algo relativamente recente.
E, embora breve, a história da almofada tal como a conhecemos, já carrega muito mais do que cabeças cansadas.
Hoje, entramos no território dos sonhos, navegamos pelo tema delicado do sono e temos, ainda, encontro marcado com uma amiga que nos escuta e compreende, sem julgamento.
Tudo à boleia de uma simples almofada.
Vamos?
Abandonamos o hall de entrada desta leitura-exposição e avançamos no corredor, que nos conduz até à sala 1.
SALA 1 » Almofada para sonhar
A almofada é o portal entre vigília e sono, o limiar onde a lógica se dissolve e o impossível ganha contornos. Para Carl Jung, era nesse território fronteiriço que o inconsciente colectivo se revelava — sonhos que nos conectam a arquétipos e a universos simbólicos que a razão raramente alcança.
O movimento surrealista, no século XX, explorou precisamente este espaço: os sonhos como janelas para mundos interiores, onde a realidade se fragmenta e a imaginação cria novas lógicas.
No seu trabalho de 2014, Sleep Series, a artista iraniana Maryam Ashkanian entrou neste universo. Escolheu tecidos finos como base para almofadas e bordou retratos de pessoas adormecidas.
Cada ponto é um gesto de contemplação: os sonhadores observam o mundo enquanto o mundo os observa.
E os sonhos transformam-se em mapas delicados e misteriosos, onde se leem desejos, medos e possibilidades.
Hoje em dia, num mundo saturado de notícias distópicas e algoritmos ansiogénicos, ainda somos capazes de sonhar?
O neurocientista Matthew Walker, autor de Porque Dormimos?, alerta que a privação do sono REM (a fase dos sonhos) está a criar uma sociedade emocionalmente desregulada, incapaz de processar traumas ou imaginar futuros alternativos.
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🛏 Quando foi a última vez que acordaste a lembrar-te vividamente de um sonho?
🛏 Se a tua almofada guardasse todos os sonhos que já tiveste, que padrões acreditas que revelaria sobre os teus medos e desejos mais profundos?
🛏 Como podemos cuidar do território selvagem e não-produtivo dos sonhos?
Na transição da primeira para a segunda sala, ouvimos o ruído de várias notificações e a vibração insistente de um telemóvel.
SALA 2 » Almofada para dormir
Nos dias que correm - e tomo a expressão no sentido literal - dormir deixou de ser apenas uma necessidade biológica: tornou-se um território de tensão.
Entre alertas constantes, horários de trabalho irregulares e a pressão para sermos sempre produtivos, passamos, muitas vezes, mais tempo a pensar na qualidade do sono do que realmente a dormir.
Ainda assim, no livro 24/7: Capitalismo Tardio e os Fins do Sono, o crítico cultural Jonathan Crary argumenta que o sono é o último bastião de resistência à produtividade desenfreada.
Escreve que o sono continua a ser único momento em que não consumimos, não produzimos e não estamos disponíveis e, por isso mesmo, há um esforço sistemático para colonizar esse espaço - com mais tecnologia e expetativas sociais.
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🛏 Se pudesses viver sem dormir, aceitarias?
🛏 Na tua vida, é frequente o sono ficar em segundo ou terceiro plano?
🛏 Já reparaste que a “higiene do sono” se transformou numa nova obrigação? Ou, por outras palavras, em mais uma tarefa a cumprir na lista infinita de estratégias para seres a tua ‘melhor versão’?
Aproximamo-nos agora de uma sala mais silenciosa. Um espaço mais íntimo, iluminado apenas por uma luz quente, alaranjada. O silêncio, aqui, é acolhedor.
SALA 3 » Almofada para nos abrigar
A almofada é testemunha muda das nossas vidas. Conhece as lágrimas da madrugada, os sussurros de amor e as pragas contra o despertador.
Não julga, não opina, não aconselha. Simplesmente acolhe. Abriga-nos das intempéries do mundo - exterior e interior.
O filósofo Gaston Bachelard, em A Poética do Espaço, fala do conceito dos “cantos” como espaços íntimos de refúgio e imaginação, onde o ser se recolhe e se reencontra.
E, nesse sentido, a almofada talvez seja um desses lugares onde (ainda) podemos suspender o mundo.
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🛏 O que é que a tua almofada testemunha mais vezes? Hesitações, desvios ou desejos?
🛏 O que procuras quando abraças uma almofada? Conforto físico ou apenas um lugar onde as tuas contradições/incoerências podem respirar?
🛏 O que acontece aos teus pensamentos quando simplesmente pousas a cabeça na almofada?
À Saída, o que levamos desta exposição?
Três almofadas. Três leituras. Três formas de “conjugar” a almofada:
1. Sonhar
A almofada pode ser um portal para o inconsciente, para o impossível e para versões de nós mesmos que não estão “sob controlo”.
2. Dormir
A almofada pode ser uma testemunha silenciosa do sono moderno: o corpo quer repouso e o mundo insiste em não desligar.
3. Abrigar
A almofada pode ser uma confidente neutra nas nossas vidas e dos poucos objetos capazes de acolher o corpo físico e o pensamento - com espaço para a incoerência e contradição.
Um convite antes da despedida
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Enquanto curadora e learning designer, o meu papel é ajudar-te a transformar conhecimento em experiências de aprendizagem:
→ cursos que fogem ao PowerPoint entediante
→ palestras que exploram novos olhares e dinâmicas anti-passividade com o público
→ eventos com um fio condutor claro, que articula temas, palestrantes e atividades de formas surpreendentes
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Leituras-exposição, uma série especial do Plano de Fuga
Esta série reúne textos que nos convidam a refletir de forma multidisciplinar sobre objetos do nosso quotidiano. Pequenas coisas que carregam histórias, memórias e camadas implícitas.
Cada leitura-exposição oferece três salas, três lentes, três modos de ver o mesmo objeto. Neste centro de exposições (e possibilidades) que é o texto, a almofada surge em sexto lugar nesta série.
As edições passadas foram dedicadas à borracha, ao dicionário, ao pente, ao prato e à tesoura.











