Tesoura para cortar
Despesas, filmes e vozes de mulheres
Há gestos que parecem inofensivos. Cortar é um deles.
Quando pegamos numa tesoura, as duas lâminas encontram-se e o que estava junto separa-se. O que era contínuo, fragmenta-se.
A tesoura destrói e exclui, ao mesmo tempo que pode construir e criar.
Corta fitas de inauguração e contratos. Aparas de papel e orçamentos de Estado. Frames e frases.
No entanto, o que a tesoura corta nem sempre é visível. E quem a segura nem sempre aparece.
Hoje, vamos desbravar este território, em três salas diferentes.
Vamos dar início a mais uma leitura-exposição?
No corredor, antes da primeira sala, vemos dinheiro cortado. Várias notas no chão.
SALA 1 » A tesoura que corta despesas
Há uma palavra que, quando aparece nos media, facilmente gera alarme:
— “Governo anuncia cortes na Saúde.”
— “Empresa prepara cortes de pessoal.”
— “Novo orçamento prevê cortes nos apoios sociais.”
Quando se fala de cortar orçamentos, salários ou direitos, a tesoura transforma-se de imediato em algo negativo.
Cortar, aqui, significa quase sempre retirar. Raramente acrescentar.
✂️ Quando ouves falar de “cortes”, qual é o teu primeiro pensamento: eficiência, necessidade ou perda?
✂️ Já reparaste como o verbo “cortar” é, tantas vezes, substituído por “otimizar”, “racionalizar” ou “ajustar”? O que é que essa troca suaviza ou esconde?
✂️ Já te aconteceu defenderes um corte e, só depois, te aperceberes do impacto real (e coletivo) dessa medida?
Saímos da Sala 1 e o corredor que nos leva à segunda sala está mais escuro. Quase não há luz.
SALA 2 » A tesoura que corta filmes — os que vemos e os que criamos
O cinema nasce duas vezes: na filmagem e na tesoura.
Antes do digital, montar um filme era literal. Pegava-se na película, escolhia-se o momento exato e cortavam-se as partes a excluir. As tiras de celuloide caíam ao chão como aparas de uma escultura invisível.
Enquanto Dziga Vertov considerava que montar um filme era organizar as diferentes partes numa ordem rítmica, Hitchcock, por seu lado, levava essa ideia da montagem tão a sério que filmava apenas o necessário, para que ninguém pudesse alterar o resultado final.
Já Leni Riefenstahl provou, de forma perturbadora, que a montagem pode transformar a realidade. Os seus filmes para o regime nazi mostram como o corte pode ser uma arma de propaganda.
Mas a tesoura não corta apenas o que está no ecrã. Edita também o que mora cá dentro: as nossas memórias.
A ciência diz-nos que a memória (em vez de um registo fiel) é uma reconstrução sujeita a distorções, esquecimentos e reorganizações.
Freud já apontava nesse sentido ao descrever a “censura psíquica” (Zensur), um mecanismo que bloqueia ou transforma o que é demasiado difícil de enfrentar.
Assim, cada vez que contamos uma história da nossa vida, não estamos a reproduzir o que aconteceu, mas a montar novamente esse episódio — tal como hoje nos parece ter sucedido.
✂️ Alguma vez viste a versão alargada de um filme - aquela com as cenas que foram cortadas? Se sim, o que mudou na tua perceção da história quando viste que “o filme” era apenas uma das versões possíveis?
✂️ Se pudesses aceder às “cenas cortadas” da tua própria vida, o que acreditas que encontrarias?
✂️ Quando alguém conta uma história sobre ti de forma diferente daquela que tu a recordas, incomoda-te mais a imprecisão dos factos ou a perda de controlo sobre a narrativa?
À medida que nos aproximamos da última sala, os olhos vão-se adaptando a uma nova luminosidade.
SALA 3 » A tesoura que corta vozes de mulheres
No livro Men to Avoid in Art and Life [Homens para Evitar na Arte e na Vida], Nicole Tersigni sobrepõe frases do quotidiano contemporâneo a várias pinturas clássicas.
Nas imagens, homens gesticulam enquanto mulheres desviam o olhar, exaustas.
Este “simples” gesto atravessa séculos, e a tesoura que o acompanha não tem lâminas metálicas - tem palavras, tons de voz, olhares. Tem estruturas de poder.
Em 2008, a escritora e historiadora Rebecca Solnit contava, no seu ensaio Men Explain Things to Me, uma situação particularmente reveladora: um homem explicava-lhe um livro que ela própria tinha escrito, detalhando-o sem lhe dar oportunidade de intervir.
O ensaio tornou-se viral e muitas pessoas reconheceram, na sua vida, uma experiência que nunca tinham conseguido verbalizar.
O fenómeno não era novo. Já existiam (e há muito tempo) situações em que um homem subestimava a inteligência de uma mulher ou tentava convencê-la de que estava errada.
A única novidade era apenas a palavra que o passou a identificar: mansplaining (man + explaining). Algo que não se trata de atribuir falhas a um género, mas de reconhecer padrões históricos de quem tem tido mais espaço para falar, ser ouvido e lido.
Padrões que, quando são invisíveis, se perpetuam, à sombra da tesoura.

✂️ Numa conversa de grupo, já reparaste quem consegue terminar as frases e quem fica sistematicamente com ideias por acabar?
✂️ Quando vês alguém ser constantemente interrompido, intervéns?
✂️ Se gravasses as tuas conversas durante uma semana, achas que as tuas interrupções seriam democráticas ou revelariam um padrão invisível?
À Saída, o que levamos desta exposição?
Três tesouras. Três cortes. Três formas de (re)cortar a realidade.
1. A tesoura que subtrai em nome da eficiência e nos convida a questionar quem decide onde ela atua, com que critérios e quem fica protegido do corte.
2. A tesoura que esculpe o tempo, frame a frame no cinema, memória a memória na nossa cabeça, escolhendo - entre mil realidades possíveis - aquela que persiste.
3. A tesoura que silencia vozes, sobretudo as de mulheres, cortando frases a meio, controlando narrativas e decidindo quem fala até ao fim e quem perde a palavra.
Um convite antes da despedida
Desta vez, faço-te um convite diferente:
📱 Se estiveres a ler esta edição no teu telemóvel, faz um print da parte desta leitura-exposição que foi mais interessante para ti.
💻 Se estiveres no computador, destaca uma área em particular. — Podes, por exemplo, usar a ferramenta de recorte ou um atalho do teu teclado.
Depois, basta partilhares esse teu recorte nos comentários.
Conto contigo para a construção do nosso mural? :)
Leituras-exposição, uma série especial do Plano de Fuga
Esta série reúne textos que nos convidam a refletir de forma multidisciplinar sobre objetos do nosso quotidiano. Pequenas coisas que carregam histórias, memórias e camadas implícitas.
Cada leitura-exposição oferece três salas, três lentes, três modos de ver o mesmo objeto. Neste centro de exposições (e possibilidades) que é o texto, a tesoura é já o quinto protagonista desta série — a seguir à borracha, ao dicionário, ao pente e ao prato.









