Relação, Disciplina e Manifesto
3 leituras possíveis de um pente em exposição
Logo à Entrada, lê-se o seguinte:
Há gestos quotidianos que se tornam invisíveis. Pentear o cabelo é um deles - um gesto simples que carrega séculos de história.
Os primeiros pentes de que há registo têm mais de cinco mil anos. Feitos de osso, marfim ou madeira, eram mais do que instrumentos de higiene. Eram sinais de estatuto, adorno e poder.
E, hoje em dia, estes “instrumentos com dentes” (o significado da palavra em latim pecten) encontram-se em túmulos, ao lado de jóias e armas, como se fossem indispensáveis à travessia para a vida além da morte.
Durante muito tempo, o verbo pentear foi conjugado por poucos. Um sinal de privilégio de quem tinha tempo e meios. Só com a Revolução Industrial é que o gesto se democratizou e, com ela, nasceu uma nova norma: todos deviam pentear-se porque o cabelo despenteado passou a significar desordem - moral e social.
Mas há outra camada neste gesto: a intimidade que ele encerra. Lembras-te das mãos que te penteavam em criança? Da paciência — ou da impaciência — de quem desfazia os nós?
Ser penteado também pode ser um ato de confiança: permitir o toque, baixar a guarda. E quando dizemos “vou-me desembaraçar desta situação”, evocamos esse mesmo movimento de desfazer nós. Com um pente real ou abstrato.
O pente torna-se, assim, metáfora de como lidar com o que nos enreda. E, por isso, talvez valha a pena vê-lo mais perto, lê-lo com mais calma.
Quem diria que o mesmo objeto pode sintetizar dimensões aparentemente conflituantes?
Estamos prestes a entrar em mais uma exposição, à boleia de uma leitura.
Vamos visitar a primeira sala?
SALA 1 » Pente que reflete uma relação (connosco e com os outros)
Nas representações medievais e renascentistas, estar em frente ao espelho significava o apego à aparência e ao olhar dos outros. E o pente, numa tríade espelho-cabelo-pente, era um meio para seduzir e para pertencer ao jogo das aparências.
Ainda assim, o gesto também pode ser íntimo enquanto ritual solitário, quase meditativo: o tempo suspenso diante do espelho, a introspeção, a atenção silenciosa a si próprio - sem que o corpo esteja refém do olhar (e da aprovação) dos outros.
Eis que surgem algumas questões para refletir antes de abandonarmos a sala 1:
🪮 Quando te penteias, estás a fazê-lo para ti e para quem te vê?
🪮 Lembras-te de alguém que te tenha penteado? O que significava ser penteado por essa pessoa? Confiança, intimidade ou também controlo?
🪮 Consegues distinguir o gesto de autocuidado (o toque, o prazer sensorial) da vaidade (a antecipação do olhar alheio)? Ou estão entrelaçados?
Saímos da Sala 1 e aproxima-se a Sala 2. Desta vez, com uma novidade.
SALA 2 » Pente que submete
A segunda sala está dividida por uma cortina e, por isso, tem duas alas:
1. Pente católico
O pente pode ser símbolo de passagem: do corpo que seduz para o corpo que se redime. Durante séculos, o cabelo solto foi sinal de heresia e perdição.
E não fechemos os olhos à questão de género: uma mulher de cabelos soltos era tida como indomada, em comunhão com forças obscuras … uma bruxa.
Na obra de Caravaggio, o pente de marfim de Maria Madalena marca a transição do cabelo selvagem para o cabelo domado. Pentear-se era pôr em ordem o corpo e a alma. Era escolher o lado da obediência e da salvação.
2. Pente laico
O gesto de pentear nunca deixou de ser um ritual de pertença — apenas mudou de altar. Enquanto na pintura de Caravaggio o pente participa na purificação da alma e na contenção do corpo, nas sociedades laicas ele passa a servir outro tipo de devoção: a do olhar público.
Durante séculos, a Igreja administrou essa liturgia da composição e com a secularização das sociedades este controlo não desapareceu. Apenas passou a marcar presença de outras formas, noutros lugares - nomeadamente no palco virtual da vida.
A “penitência” passou a exposição constante e o “perdão” tornou-se a validação social. O pente continua, hoje em dia, a ser instrumento de disciplina, embora em nome da produtividade e da performance.
No entanto, o despenteado deixou de sinal de perdição e passou a ser indício de autenticidade. O corpo passou a negociar-se no mercado da visibilidade. Já não se trata de obedecer a Deus, mas de corresponder à expectativa de uma audiência anónima.
Depois de visitadas as duas alas, encontramos uma parede de interrogações no final da cortina:
🪮 Quantas vezes por dia te vês ao espelho para confirmar que estás “apresentável”?
🪮 Já mudaste o teu penteado para te sentires aceite num contexto profissional?
🪮 Quando não estás penteada e alguém te vê, sentes-te julgada ou menos competente?
E assim que nos aproximamos da última sala, parece que de um pente se ergue um punho.
SALA 3 » Pente que reivindica
Nos anos 70, surge o Afro Pick, um pente garfo, símbolo do movimento Black Power. Os dentes largos respeitavam texturas que os pentes “convencionais” ignoravam. Cabelos que, durante décadas, foram pressionados a esconder-se, a alisar-se, a tornar-se “aceitáveis”.
Este pente inverteu essa lógica. Como se aquele objeto ganhasse voz: “O meu cabelo não precisa de ser domado ou de ser alisado”.
Quando o cabo assumiu a forma do punho erguido — gesto de resistência nos Jogos Olímpicos de 1968 — o pente tornou-se manifesto. Não era arma nem bandeira, mas carregava uma mensagem política: “Recuso conformar-me.”
Este pente pode provocar-nos de várias formas:
🪮 Para que tipo de cabelo foi desenhado um pente convencional?
🪮 Consegues ver o colonialismo presente noutros objetos além do pente?
🪮 Hoje, quando se fala de diversidade, será que se estão a redesenhar objetos e narrativas ou apenas a tingir de inclusão aquilo que continua estruturalmente excludente?
O que levamos desta exposição?
À Saída, lê-se:
Três pentes. Três leituras. O mesmo objeto.
1. O pente como relação
Ao pentearmo-nos ou ao pentearem-nos, o gesto oscila entre o olhar para dentro e o olhar alheio. Uma negociação constante entre o que fazemos por nós e aquilo que fazemos para ser (bem) vistos.
2. O pente como disciplina
O pente migrou de um contexto de purificação espiritual para um de performance social. Já não é Deus que nos vigia, mas uma audiência anónima que parece “pentear” quem somos e o que fazemos.
3. O pente como manifesto
Um objeto quotidiano pode ser uma declaração política ao comunicar a recusa de conformidade. Pode mostrar-nos que a diversidade não é apenas tolerar o diferente, mas questionar as estruturas que tornaram certos cabelos, errados.
Um convite antes da despedida
O pente é um objeto pequeno, mas cabe nele toda uma revolução.
Este é o terceiro texto da série leituras-exposição e gostava muito de levar esta experiência a mais pessoas.
Ajudas-me a aumentar o número de visitantes? :)
Leituras-exposição, uma série especial do Plano de Fuga
Esta série reúne textos que nos convidam a refletir de forma multidisciplinar sobre objetos do nosso quotidiano. Pequenas coisas que carregam histórias, memórias e camadas implícitas.
Cada leitura-exposição oferece três salas, três lentes, três modos de ver o mesmo objeto. Depois do dicionário e da borracha, o pente é o terceiro texto.








Que texto excepcional Margarida! Levou-me ao quarto dos meus pais. Lá, a minha mãe tinha a árdua tarefa de me pentear. Domar este cabelo, fazendo duas tranças para ir apresentável para a escola.
Muito interessante a reflexão e a perspectiva histórica, Margarida!