Estamos prestes a entrar numa exposição à boleia de uma leitura.
Logo à entrada, lemos o seguinte:
Quase a entrar na Sala 1, vemos esta frase no corredor:
Da inocência do gesto à memória do papel.
SALA 1 » A Borracha Física
Já crescemos a aprender que o erro é vergonha. Algo a esconder, a apagar, a eliminar depressa.
Desde cedo, é-nos ensinado que folhas limpas “são melhores” e que trabalhos não rasurados “valem mais” do que aqueles que têm alguma correção visível ou denunciam dúvida ou hesitação.
Parece que só a versão final importa e veem-se eliminadas as provas de que aprender não é um sprint ou de que criar e errar andam, normalmente, de mãos dadas.
No entanto, mesmo depois de apagado, não é rara a vez em que o verbo deixa rasto.
O relevo do lápis que pressionou a folha.
A textura ligeiramente diferente onde a borracha friccionou.
O brilho diferente daquela superfície.
Por isso, apagar não significa fazer algo desaparecer por completo. O erro passa de visível a invisível, mas continua lá - inscrito na própria materialidade do papel.
Ainda assim, a nossa relação com o erro continua a ser conturbada. E isto levanta questões:
Por que preferimos, tantas vezes, a ilusão de perfeição à honestidade do processo?
Na escola, quantas vezes te foi pedido para passares o teu trabalho a limpo?
De onde vem esse medo de ter de esconder o que não correu bem?
🧾 Fatura: Uma relação com o erro, que tem tudo para dar divórcio.
Saímos da Sala 1 e aproxima-se a Sala 2. Nesta transição, lê-se:
Da borracha que decidimos usar à borracha que decide por nós.
SALA 2 » A Borracha Digital
Nas bibliotecas, quando se retiravam livros das prateleiras, havia processos, atas. Havia vestígios, transparência. Ou, pelo menos, havia a possibilidade de existir alguma pegada.
No digital, a subtração acontece de forma diferente:
“Este conteúdo foi removido.”
“Esta conta foi suspensa.”
“Este vídeo já não está disponível.”
Mas quem apagou? Porquê? E com que critérios?
Todos os dias, milhões de conteúdos desaparecem das plataformas.
Algoritmos treinados para detectar material problemático cometem erros - apagam arte, educação, testemunhos históricos, discussões legítimas. Contexto e nuances.
Apagar, no digital, deixou de ser somente um gesto individual. Empresas privadas, com as suas próprias regras e prioridades, gerem o que se pode (ou não) dizer, ver e partilhar.
Fazem-no à escala global e, infelizmente, com pouca supervisão democrática.
Uma coisa parece evidente: a borracha digital não é neutra e as perguntas multiplicam-se, sem respostas fáceis:
Como equilibramos liberdade de expressão e proteção contra danos?
Quem deve ter autoridade para decidir - empresas, governos, utilizadores, algoritmos?
O que fazemos quando diferentes culturas têm diferentes noções do que é aceitável?
🧾 Fatura: Não sabemos (nem controlamos) o que é apagado no meio digital.
E assim que nos aproximamos da última sala, antes, podemos ler:
Da borracha que apaga dados à borracha que apaga pessoas.
SALA 3 » A Borracha Social
Quando foi a última vez que pensaste no caminho que uma encomenda faz até chegar à tua porta?
A verdade é que pouco tempo depois do check-out, a embalagem está em casa.
Não vemos o armazém.
Não nos cruzamos com quem preparou a encomenda.
Não sabemos o nome de quem a entregou.
E quando não vemos estas pessoas (e se desumanizam processos), deixamos de fazer perguntas. Não perguntamos em que condições trabalham. Não perguntamos quanto ganham. Não perguntamos se têm pausas, folgas, dignidade.
E se parássemos para pensar no custo invisível desta velocidade:
Que tipo de trabalho não estamos a considerar no ato da compra?
É imprescindível que a encomenda chegue dentro de 24 horas?
Quanto tempo estamos dispostos a esperar por uma pegada social e ambiental mais sustentável?
🧾 Fatura: A invisibilidade de uns viabiliza a conveniência de outros.
O que levamos desta exposição?
À Saída, lê-se:
Um convite antes da despedida
🖼️ Em que sala ficaste mais tempo?
🔎 Que borracha te surpreendeu mais: a física, a digital ou a social?
Responde a este email ou partilha a tua experiência nos comentários. :)
Este texto pertence à nova série do Plano de Fuga: leitura-exposição
Esta série reúne textos que nos convidam a refletir de forma multidisciplinar sobre objetos do nosso quotidiano. Pequenas coisas que carregam histórias, memórias e camadas implícitas.
Cada leitura-exposição oferece três salas, três lentes, três modos de ver o mesmo objeto. A borracha foi apenas o início.
Conto contigo na próxima semana?