Estamos prestes a entrar numa exposição à boleia de uma leitura, mas antes, quero fazer-te uma pergunta:
Faço-te esta questão porque os dicionários sempre suscitaram em mim uma grande curiosidade.
Lembro-me bem de ter em minha casa um dicionário que adorava consultar por parecer uma enciclopédia e ter (quase) sempre os significados que o mais pequeno, que nos pediam para levar para a escola, não tinha.
Às vezes, o trabalho de casa era ir procurar ao dicionário o significado de várias palavras e, depois, transcrever a definição para o caderno. E, quando assim era, eu aproveitava para bisbilhotar essas páginas para aprender as palavras mais estranhas que encontrava.
Gostava, especialmente, de realizar essa tarefa com o tal dicionário-enciclopédico. Sentava-me no chão, com aquele paralelepípedo grande e pesado no colo, com o dedo indicador em investigação.
Bem, mas agora é hora de eu me afastar para dar espaço à tua exploração nesta leitura-exposição.
A Entrada é aqui, já a seguir.
Avanças um pouquinho mais…
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E deparas-te com este texto introdutório:
No corredor, já encontras uma pista do tema da primeira sala:
A nossa necessidade de nomear
SALA 1 » Segurança
Esta manhã
hoje
é um nome
Nem mesmo amanheceu
nem o sol
a evoca
Uma palavra
palavra só
a ergue
Com um nome
amanhece
clareia
Não do sol
mas de quem
a nomeia
| Poema “O Nome Lírico”, de Fiama Hasse Pais Brandão (1983)
—
Vivemos dentro da linguagem antes de perceber que ela nos habita. As palavras chegam até nós por imitação, por urgência e pelo desejo de compreender e de sermos compreendidos.
Naturalmente, procuramos - nas conversas, nos motores de busca, nos dicionários físicos/digitais - as palavras que possam expressar melhor o que sentimos ou o que ainda não sabemos verbalizar.
Por isso, procurar no dicionário é, de alguma forma, procurar validação. Como quem quer ter a certeza de que uma palavra “existe”, de que o pensamento ou a emoção que nos atravessa tem uma morada.
Nomear é a nossa tentativa de pôr o caos em ordem. Porém, podem surgir pontos de interrogação como:
🔸 O que nos faz procurar uma definição? É a curiosidade, a dúvida ou o medo de estar a usar a palavra errada?
🔸 O que podemos estar a silenciar em nós ou na relação com os outros, por não nos atrevermos a explorar um território desconhecido da linguagem?
🔸 Até que ponto a rede linguística que o dicionário nos oferece, pode condicionar a nossa visão ou expressão mais subjetiva?
Assim que abandonas a Sala 1, aproxima-se a 2 e já lês no corredor:
A autoridade para definir
SALA 2 » Poder
Quando consultamos um dicionário, a nossa mente está focada na utilidade desse comportamento e dificilmente o nosso primeiro pensamento será sobre “quem” escolheu as palavras que ali podemos encontrar e em que critérios se baseou.
De qualquer forma, precisamos de reconhecer que o dicionário não é um glossário neutro de palavras. Inclui o que se considera necessário definir e, ao mesmo tempo, exclui o que irá ficar fora do holofote.
Por exemplo, palavras relacionadas com género, orientação sexual, religião e deficiência, além de refletirem transformações ideológicas e sociais, facilmente revelam tensões.
O que pode suscitar perguntas deste género:
🔸 Quantas palavras foram definidas sobretudo por grupos privilegiados da sociedade?
🔸 Quantas definições refletem e reforçam relações de poder existentes?
🔸 Em certa medida, podemos considerar a Constituição de um país o seu dicionário normativo?
E eis que chega a sala três, podendo-se ler antes de entrar:
A liberdade de questionar
SALA 3 » Resistência
As palavras têm vida própria: envelhecem, morrem, ressuscitam com novos significados. Torna-se quase inevitável transgredirem quaisquer limites que lhes possam impor.
Além disso, é natural que vão surgindo palavras novas que não aparecem (logo) nos dicionários por haver comunidades que criam os seus próprios significados, à parte dos dicionários oficiais.
Uma língua viva é uma língua em conflito, em expansão, em constante metamorfose. Por isso, vale a pena perguntar:
🔸 Que palavras consideras importantes hoje em dia e, ainda assim, sentes que estão a cair em desuso?
🔸 De que forma os dicionários poderiam acompanhar melhor a evolução da língua sem aprisionar as palavras em definições rígidas?
🔸 Até quando acreditas que este trabalho de criação e atualização de vocabulário será feito por humanos?
Já quase a terminar esta leitura-exposição…
À Saída, ainda é visível uma última mensagem:
Um convite antes da despedida
Depois desta leitura-exposição, o que acrescentarias a esta definição de “dicionário”?
Eu adicionava este segundo ponto:
2. Um arquivo aparentemente neutro e inevitavelmente incompleto.
E tu? :)
Este texto pertence à nova série do Plano de Fuga: leituras-exposição
Esta série reúne textos que nos convidam a refletir de forma multidisciplinar sobre objetos do nosso quotidiano. Pequenas coisas que carregam histórias, memórias e camadas implícitas.
Cada leitura-exposição oferece três salas, três lentes, três modos de ver o mesmo objeto. A seguir à borracha, o dicionário é o segundo texto desta série.