Quando a fuga se torna casa (com Clarice à janela)
O que a evasão nos pode revelar sobre as nossas necessidades ou preferências
Estava a ler um livro sobre migrações quando me deparei com o parentesco linguístico das palavras "fugir" e "refúgio". Não é propriamente surpreendente - faz todo o sentido. No entanto, decidi aprofundar este ponto de contacto: fugere.
Fugere significa "pôr-se em movimento" e foi desta raíz que brotaram palavras aparentemente opostas: fugir (mover-se para longe) e refúgio (lugar para onde nos movemos). Ao que parece, a própria língua latina guardava este segredo: ambas são formas de movimento em direção à segurança.
Lembrei-me do universo de Clarice Lispector, em que as personagens se refugiavam na própria interioridade. Como se descobrissem que fugir para dentro pudesse ser a única forma de finalmente chegar a casa.
E se algumas das nossas fugas fossem, na verdade, formas inconscientes de construir refúgio? Em vez de fugirmos de algo, fugirmos para algo?
Comecei a reparar em padrões à minha volta:
→ Alguns movimentos que parecem "evitamento" podem ser tentativas legítimas de encontrar contextos onde nos sentimos genuinamente capazes de crescer.
Como a pessoa que prefere aprender mais sobre um tema através de workshops presenciais em vez de aulas online. Talvez não esteja a "fugir" da interação, mas a procurar um ritmo que lhe permite realmente absorver informação.
→ Certas preferências que rotulamos como "dificuldades" podem ser formas intuitivas de procurar ambientes mais alinhados com as nossas necessidades reais.
Alguém que escolhe trabalhar em espaços silenciosos pode não estar a "evitar" colegas, mas a criar condições onde consegue dar genuinamente o seu melhor.
→ Alguns padrões que interpretamos como "resistência" podem ser tentativas de preservar espaço para formas de aprendizagem que ainda não foram reconhecidas.
Quem explora constantemente novos interesses pode não estar a "desistir" de coisas, mas a mapear territórios até encontrar onde se sente verdadeiramente em casa.
💭 Repensar a aprendizagem
Durante décadas, a educação tem olhado para estes movimentos de fuga como um problema a resolver, um desvio a corrigir. Mas e se olhássemos para estas fugas enquanto estratégias sofisticadas de navegação?
Esta reinterpretação ganha ainda mais sentido quando olhamos para o que sabemos sobre o funcionamento do cérebro. A neurociência mostra-nos que os circuitos cerebrais que nos afastam do que percecionamos como ameaça são os mesmos que nos aproximam do que sentimos como seguro. Ambos são movimentos em direção ao bem-estar.
Mas aqui está o paradoxo interessante: o melhor refúgio para aprender não é aquele onde não há desafio, mas onde há desafio suficiente.
🔄 O movimento rumo à segurança
Isto fez-me questionar toda a nossa relação com estes impulsos. Em vez de forçar permanência em ambientes que geram ansiedade, que tal perguntarmos:
❓ Que tipo de conhecimento procuramos quando nos "afastamos"?
❓ Que competências desenvolvemos quando procuramos "abrigo"?
❓ Que desafios estamos dispostos a enfrentar quando nos sentimos seguros?
A aprendizagem mais profunda acontece nesta zona híbrida — suficientemente segura para não paralisar, suficientemente desafiante para não adormecer. É o refúgio que convida à aventura, não o que a impede.
Talvez uma educação mais consciente passe precisamente por reconhecer que alguns dos nossos movimentos mais instintivos são tentativas legítimas de encontrar o equilíbrio certo entre abrigo e exposição.
Tal como as personagens de Clarice, parece que só chegamos a casa quando finalmente conseguimos olhar pela janela. A janela torna-se o “teste”: o lugar onde o movimento para dentro encontra o movimento para fora, onde descobrimos se o abrigo nos isolou ou nos preparou para encarar o mundo.
Perante esta descoberta, a presença de Clarice torna-se ainda mais valiosa. Espero que nos possa fazer companhia à janela, mais vezes. Não para nos perguntar se estamos a fugir, mas para nos fazer pensar se as nossas fugas nos estão a permitir habitar quem somos.
Quem está deste lado?
Sou a Margarida e vivo nas interseções — entre aprendizagem e arte, rigor e intuição, pensamento e ação. Entusiasma-me questionar a industrialização do conhecimento e explorar territórios onde as perguntas são mais interessantes do que respostas definitivas.
Acredito que o conhecimento não é algo que se possui, mas que se cultiva. Que as melhores descobertas acontecem quando questionamos o óbvio e criamos pontes improváveis. Que estruturas bem desenhadas expandem possibilidades em vez de as limitar.
Além desta newsletter, trabalho com pessoas e organizações que querem transformar conhecimento em experiências que vão além da linearidade — seja desenhando Rotas de Aprendizagem para cursos e workshops, preparando Workshalks que transformam uma palestra numa oportunidade de aprendizagem coletiva ou criando Eventos-Ecossistema, onde diferentes universos se polinizam.
Este é o primeiro texto de uma newsletter semanal.
Todas as terças-feiras, irei partilhar um novo "plano de fuga" - pequenas investigações para mentes inquietas que procuram alternativas aos trilhos previsíveis e lineares de aprendizagem. Se também sentes curiosidade por estes temas, fica por perto.
E se quiseres saber mais sobre o meu trabalho ou se esta leitura despertou o teu interesse acerca da minha abordagem, convido-te a espreitar as oportunidades de colaboração disponíveis.
Obrigada pela tua companhia nesta primeira fuga! Hoje em dia, com o tempo acelerado e a atenção tão disputada, fico muito feliz com a tua presença.
Se algo ressoou contigo ou tocou nalguma inquietação que também carregas, partilhas comigo nos comentários? :)
Até para a semana!
Eu tenho um lado místico e ele interpreta tanto a racionalidade e voracidade por aprender e comunicar de gêmeos, quanto o desejo incessante de viajar e explorar lugares distantes de sagitário, ambos com uma verdadeira vontade de ir para fora de si, além daquilo que possui, buscando algo no externo, mas que inevitavelmente essa busca vai esbarrar e mostrar que não é sobre o que o exterior pode mostrar, ensinar, mas sim o quanto o interno é capaz de se reconhecer e se conectar com o externo.
Lendo sua edição, me trouxe essa lembrança da analogia com os arquétipos desses dois signos.
Como a escrita e a leitura são potentes né, podem acessar lugares em nós e nos outros que vão além do que podemos esperar, aliás esperar, não é antônimo de fuga, mas está bem longe de guardar a mesma essência que ela contém rs.
Obrigada pela partilha.
Tão interessante e ao mesmo tempo inquietante este pensamento de "fugas" como um reequilíbrio... Inquietante por sermos tão rápidos a julgar estes movimentos como não válidos. Por serem fugas... Esta (re)definição da própria palavra pode levar a avaliações menos precipitadas. Excelente texto para iniciar esta viagem!