E se eu te dissesse que muitas das palavras que usamos diariamente são fantasmas? Estão presentes, mas não deixam rasto. Soam familiares, embora não acendam faíscas visuais.
Depois, existem também as palavras que funcionam como maçanetas: permitem que sejam abertas portas para novas realidades, para outros olhares.
E há ainda aquelas que parecem gastas: em tempos, foram novidade, no entanto, hoje parecem apenas repetir-se vezes sem conta, à espera de serem reanimadas.
Foi ao observar estas variações que comecei a mapear estas palavras em três territórios distintos. E o mais interessante é que cada um deles funciona como um convite diferente ao nível da experiência de aprendizagem.
Vamos ver de que forma?
1. Palavras-fantasma
Nasceram abstratas e permanecem no reino das ideias puras.
As palavras-fantasma são úteis para uma comunicação técnica, mas não alimentam a imaginação. Por exemplo, quando dizemos "Preciso de otimizar este processo", que imagens surgem na mente de quem nos ouve?
Provavelmente, nenhuma.
É fácil de identificá-las porque estas palavras não carregam mundos. Apenas conceitos.
E como resposta a este vazio, em vez de nos resignarmos, podemos questionar:
"O que quero dizer, ao certo, quando uso esta palavra?"
Dependendo do contexto, posso querer dizer coisas diferentes:
🕒 Precisamos de eliminar etapas desnecessárias, encurtar prazos
💸 Precisamos de poupar dinheiro
❌ Precisamos de aumentar a qualidade do resultado final, reduzindo erros cometidos;
🛣️ Precisamos de simplificar, tornando o processo mais claro, direto e fácil de executar;
🤖 Precisamos de usar tecnologia para automatizar algumas fases do processo.
E, de repente, podemos começar a criar imagens ou a associar ícones a um termo abstrato.
Aliada a esta via da especificidade, podemos ainda explorar outros recursos:
- Usar uma analogia ou uma metáfora para ligar a “otimização” a algo familiar;
- Caracterizar dois cenários opostos para mostrar o que “é” e “não é” otimização;
- Partilhar uma história (pessoal ou não) para haver uma transformação concreta em causa.
E se, por um lado, as palavras-fantasma nos obrigam a ir mais longe para criar imagens, existe uma segunda categoria em que as palavras já vêm visualmente equipadas.
2. Palavras-maçaneta
Como o próprio nome indica, as palavras-maçaneta abrem portas na nossa mente. Dão-nos acesso a espaços novos e despertam os nossos sentidos.
Nesta categoria, cada palavra é um pequeno teatro mental, onde as ideias podem assumir diferentes papéis. Por isso, não é de estranhar a presença de analogias e metáforas neste território.
Estas palavras criam um lugar onde a imaginação pode transgredir o que é 100% racional, cientificamente correto ou consensual.
Aqui, talvez o desafio não seja encontrá-las (ou inventá-las). Trata-se de reconhecer o efeito memorável que têm na mente de quem assiste a um curso, ouve uma palestra ou vê algum infográfico completamente diferente do habitual.
Alguns exemplos:
— Um cabide para pendurar pensamentos;
— Um balde furado para demonstrar um plano comprometido;
— Falar em pensamento quadriculado para nos referirmos a uma abordagem que privilegia apenas a lógica e as regras, deixando pouco espaço para o improviso.
3. Palavras gastas
Sapatos para empatia; Caixa para criatividade ("fora da caixa"); Borboleta para transformação
É nesta terceira categoria que mora uma grande oportunidade.
Em vez de o foco ser banir estas palavras, passa a ser reinventar os lugares comuns que perdem força, precisamente por confirmarem uma expectativa social.
Gosto de pensar que estas palavras não estão mortas. Há nelas um potencial que facilmente vira potência quando deixamos de ficar reféns do clichê e, a partir dele, chegamos a novos patamares de entendimento e questionamento. 💭 Sabias que “clichê” era o nome de uma chapa de metal usada para imprimir a mesma imagem ou texto várias vezes? Por analogia, passou a ser usada para indicar algo que é repetido mecanicamente, sem criatividade.
O poder do inesperado
Um exemplo flagrante é o do envelhecimento. Um tema que facilmente se associa a doença, incapacidade e finitude.
A pergunta que se coloca é: “E se usássemos essa “matéria-prima” para mudar a narrativa?”
Projetos como as Velhas Bonitonas mostram-nos como podemos fazê-lo com mestria. Em vez de fugir da palavra "velhas", Maria Seruya decidiu juntar-lhe um adjetivo improvável, “bonitonas”.





Neste caso, esta estratégia contraintuitiva - aliada à arte - acaba por ser uma via bastante eficaz (e criativa) para abordar estereótipos e preconceitos através de outra lente.
Transformar o global em tangível
O mesmo acontece com a “sustentabilidade” - uma palavra que, facilmente, oscila entre o jargão técnico e o greenwashing.
A título de exemplo, o trabalho da fotógrafa Mandy Barker no projeto Penalty mostra-nos uma estratégia diferente: a síntese.
Barker usa um objeto concreto e reconhecível (bolas de futebol encontradas nas praias) para tornar visível um problema abstrato e complexo: a poluição marinha.


As imagens nasceram de uma post público que Barker fez nas redes sociais. E em apenas quatro meses, graças ao contributo de 89 pessoas, foram recolhidas 992 bolas e fragmentos em 144 praias de 41 países.
A fotógrafa britânica organizou esse material em composições visuais que mostram diferentes escalas do problema: uma coleção mundial, recortes regionais (Europa, Reino Unido) e ainda o caso extraordinário de uma única pessoa que, sozinha, recolheu 228 bolas.
Entre erosão e reverberação
As abordagens criativas de Maria Seruya e Mandy Barker para revitalizar palavras gastas encontram eco num livro que quero partilhar contigo: Dicionário da Erosão, de John Freeman.
Ao analisar como a linguagem e os valores se vão esvaziando, Freeman lembra-nos que as palavras têm vindo a perder força. E é nesse ponto que acredito que entra a nossa responsabilidade: mais do que usá-las, precisamos de cultivar a sua reverberação nas experiências de aprendizagem que criamos.
Além de se dizer ou escrever algo, importa considerar o "nível de reverberação" do que se diz e escreve.
Quando escolhemos atribuir novas camadas visuais às palavras, em certa medida, estamos a fazer mais do que escolher sinónimos. Estamos a privilegiar modos de pensar que convocam ativamente a nossa imaginação.
Uma coisa é certa: esta cartografia das palavras não é estanque ou um fim em si mesma. É, sim, um convite a observar como comunicamos e, sobretudo, como podemos comunicar melhor:
1️⃣ Transformando o abstrato em concreto
2️⃣ Aproveitando a força das imagens que nos abrem portas
3️⃣ Devolvendo vida(s) às palavras gastas pelos clichês
Com a ascensão da GenAI e num mundo de pós-verdade, esta discussão ganha outro fôlego. No entanto, esse será um tema a explorar noutra edição desta newsletter.
Para já, importa reconhecer que o contexto de quem desenha experiências de aprendizagem e de quem nelas participa, já está a mudar. E não é pouco.
Obrigada por me acompanhares em mais uma fuga!
Este texto nasceu de uma inquietação que me acompanha há algum tempo e de uma convicção cada vez mais clara: a linguagem que escolhemos influencia diretamente a qualidade da experiência que criamos.
Talvez estas perguntas possam ser rastilhos para ti:
❓Que palavras invisíveis usas mais vezes no teu dia-a-dia?
❓ Das metáforas que utilizas para descrever o teu projeto, quais poderias atualizar?
❓ Quando falas das causas que defendes, que palavras convocas?
Fico curiosa para te ler, nos comentários.
Se ficaste a fervilhar com ideias que gostavas de pôr em prática na tua comunicação verbal/visual, partilha comigo o teu projeto!
Vemo-nos na próxima semana?
Espero que sim! :)
Interessante. Fez-me pensar que há certas "aventuras" que fazemos quando estamos a aprender uma nova lingua (como criança a aprender a falar ou adulto a experimentar uma lingua diferente). Esticamos palavras, usa-mo-las em contextos que "não são passíveis" de serem usadas ou de forma a construir expressões novas ou literalmente traduzidas da nossa língua-mãe. O quão interessante é (re)aprendermos as nossas próprias palavras com aqueles que "não as sabem".