"Devias ter mais foco. Olha para os outros. Todos sabem exatamente o que querem. Tu é que ainda andas aí a fazer experiências como se fosses um adolescente e tivesses todo o tempo do mundo."
Esta voz conhece-nos bem. Sabe qual os gatilhos a acionar. Aparece quando alguém nos pergunta "Então, o que andas a fazer?" e não temos uma resposta na ponta da língua, ou quando decidimos explorar algo novo e essa escolha parece "pouco séria".
É uma voz que não é bem nossa, mas que adotámos como se fosse. Que fala como se houvesse um cronómetro invisível, como se a vida fosse um exame com tempo limitado e estivéssemos a "perder pontos" por cada desvio que fazemos da linha reta que supostamente devíamos estar a seguir.
Ultimamente tenho-me perguntado: de onde vem esta voz? E, mais importante, por que persiste?
A sedutora necessidade de controlo
"Se não tens um plano claro, não vais conseguir. Sucesso é para quem sabe o que quer."
Há algo que raramente admitimos: queremos que a nossa vida seja uma sucessão coerente e apelativa de eventos.
Não apenas por nos ser, tantas vezes, “ensinado” dessa forma (não são poucos os livros e filmes que reforçam essa expetativa), mas porque a ideia de que existe uma trajetória linear e controlável para a vida é profundamente reconfortante.
Afinal de contas, se há um caminho certo a seguir, então há uma maneira de evitar (ou até de eliminar) o caos, a perda, o fracasso.
E, claro, esta obsessão pela linearidade também se reflete no modo como encaramos a aprendizagem. Queremos passos lógicos, que cada competência sirva um propósito imediato, concreto e, de preferência, bem visível.
Como se o acesso a determinados conteúdos pudesse, por si só, solucionar todos os bloqueios não-cognitivos, e como se o conhecimento fosse somente válido quando conseguimos traçar uma linha entre o que aprendemos e o que vamos fazer a seguir.
Com isto não estou a defender o abandono de objetivos. Eles são importantes. No entanto, quando se tornam a única linguagem que conseguimos usar para justificar as nossas escolhas, algo se perde.
E é precisamente nesse vazio que a pressão para estarmos no posto de controlo encontra terreno fértil. Uma pressão não só social, mas também existencial.
Porquê? Porque pessoas que admitem improvisar, que aprendem movidas pela curiosidade, ameaçam a nossa fantasia coletiva de que sabemos sempre para onde queremos ir e por que fazemos o que fazemos.
Gera-se facilmente uma dupla penalização da pessoa que percorre um caminho não-linear: ora é rotulada como “leviana” e “imatura”, ora é invejada justamente por não estar refém de um plano estratégico que antecede qualquer decisão.
Acima de tudo, parece haver uma violência subtil em negarmos às pessoas (nós, incluídos) o direito de viver vidas - inevitavelmente imprevisíveis e com um fator aleatório em jogo.
E ainda que a capacidade de olhar para trás e fazer conexões seja uma das nossas competências mais preciosas (é assim que aprendemos e crescemos), o problema surge quando transformamos esta reflexão natural numa exigência de coerência imediata e constante.
Exigimos uma narrativa perfeitamente articulada que pode simplesmente não existir naquele momento. Forçamo-nos a inventar fios condutores prematuros entre eventos que podem não ter relação.
Como se admitir que certas escolhas foram circunstanciais, intuitivas ou exploratórias fosse uma falha moral, e não algo humano.
A tirania da certeza absoluta
"Toda a gente que é bem-sucedida sempre soube o que queria.”
Há uma fantasia de que existe um lugar no futuro onde teremos tudo resolvido, onde cada escolha será óbvia, onde não haverá mais dúvidas ou desvios.
Normalmente, essa promessa começa pela palavra “quando”:
— “Quando tiver X anos”
— “Quando chegar à posição Y”
— “Quando dominar a competência Z”
É como se a vida adulta se devesse reger por uma linha ascendente, em direção a esse lugar e, só lá, é que iríamos finalmente descansar na certeza absoluta.
Porém, esse cume da montanha não passa de uma ilusão. Já reparaste que cada vez que pensamos estar perto, há sempre mais um degrau?
Coco Krumme, no seu livro Optimal Illusions, expõe exatamente esta armadilha: a crença de que existe uma versão otimizada e resolvida de nós mesmos, à nossa espera no futuro.
Uma promessa de otimização total que, embora nos seduza, adia a nossa capacidade de habitar plenamente o presente imperfeito, e ainda nos responsabiliza pela suposta incompetência de nunca chegar lá.
Além da montanha
A propósito desse “lá” (distante e perfeito), lembro-me de há uns anos ter visto algo impressionante num programa de televisão.
Numa visita guiada ao complexo de Angkor, o jornalista Philippe Gougler perguntava, surpreendido, ao guia local, por que motivo havia partes incompletas nas esculturas.
O guia explicava que, para além dos conflitos e tensões geopolíticas que justificavam algumas dessas lacunas, outras tinham sido originalmente deixadas incompletas - em diálogo livre com o tempo e com a Natureza.
Na filosofia budista do Camboja, dizia ele, quando algo está terminado, está morto.
Por isso, ao contrário da obsessão ocidental pelo “produto acabado”, essa noção de incompletude mantinha o templo vivo.
As linhas do desejo
E quem diria que conseguíamos encontrar, bem próximos de nós, exemplos quotidianos de resistência ao terminado e pré-determinado?
Os arquitetos paisagistas conhecem bem as desire lines: os caminhos informais que criamos quando ignoramos os percursos oficiais.
São aqueles trilhos espontâneos que surgem, por exemplo, na relva, desafiando os passeios de betão que alguém decidiu que devíamos seguir.
Esta cartografia da intuição coletiva tem vindo a transformar o planeamento urbano e vai além da via pública.
Várias universidades constroem agora os seus caminhos pedestres só depois de observar os percursos espontâneos dos alunos.
E se, em vez de seguirmos apenas as "rotas pré-definidas" de carreira e aprendizagem, também honrássemos as nossas "linhas do desejo" - aqueles desvios aparentemente ilógicos que fazemos quando seguimos uma necessidade, um feeling ou um interesse?
Quando finalmente tivermos coragem de admitir que muitas das nossas decisões foram circunstanciais, acredito que muitas pessoas irão respirar de alívio. Como se partilhássemos o mesmo segredo guardado há demasiado tempo: o de que a vida não é uma equação com uma única solução.
E talvez seja precisamente aí - no reconhecimento honesto destes percursos reais - que podemos encontrar uma forma mais saudável de navegar a incerteza.
E por falar em linhas:
1 → "The Problem with Optimizing Our Lives"
Adam Grant conversa com Barry Schwartz e Coco Krumme sobre o lado sombrio de querermos otimizar tudo na nossa vida.
2 → Inesquecíveis Viagens de Comboio
Foi neste programa com o incrível Philippe Gougler, que descobri a filosofia budista aplicada a vários templos do sudeste asiático. O episódio que vi em 2016 não está disponível online, mas começou a ser divulgada em Agosto deste ano uma nova temporada. Não percas!
3 → Desire Lines da Arquitetura Paisagista
Neste artigo do Guardian, Andrew Furman, professor de arquitetura, diz olhar para as desire lines como formas de resistência. Quando as cidades não oferecem os caminhos que os peões precisam, as pessoas votam com os pés.
Um convite antes da despedida
Se também te sentes a carregar o peso de justificar todas as tuas escolhas, fica à vontade para partilhares a tua experiência nos comentários ou através de uma mensagem privada.
Deixo aqui três rastilhos:
❓ Que partes da tua história tiveste de reescrever para parecerem mais intencionais do que foram?
❓ Como seria admitir que algumas das tuas melhores decisões não foram super planeadas nem estratégicas?
❓ Que competências valorizas hoje e, na realidade, nasceram de uma conversa casual, de um projeto que começaste por curiosidade ou de um livro que compraste por impulso?
Obrigada por me acompanhares em mais uma fuga!
De mãos dados com o trabalho que desenvolvo enquanto learning designer e curadora de aprendizagem, esta newsletter é onde dou voz aos temas que me movem sobre aprendizagem - tanto a que acontece sem nos apercebermos, como a que escolhemos conscientemente.
Todas as semanas, partilho uma nova descoberta desta investigação contínua.
Por isso, se também questionas os trilhos que te disseram para seguir, não percas o próximo Plano de Fuga!
Amei te ler Margarida! ❤️
Esses tempos fiz uma reflexão muito profunda sobre o quanto já tomei decisões que se mostraram muito acertadas sem pensar muito. Uma amiga me falou de um edital para entrar na universidade que foi a que me formei, um cliente que é meu parceiro até hoje me mandou uma mensagem me oferecendo trabalho a partir de um prato de comida que postei no Instagram, uma outra amiga que me mandou mensagem "do nada" me convidando pra ficar na casa dela, o que originou a viajem mais especial da minha vida.
Muitas coisas já aconteceram sem eu planejar, chegando exatamente no momento em que eu precisava delas.
Por aqui tenho buscado focar em como desejo me sentir, e preparar meu terreno interior para que haja espaço para as oportunidades que se alinham ao meu desejo consigam chegar. Desafiador, mas ao mesmo tempo libertador.
Beijos e um abraço apertado 🫂😘
Li e estava a digerir e reli a edição.
Vai muito ao encontro do que me propus esse ano.
Mudar de trabalho, quando me perguntaram, para onde vai eu disse, não sei, o que você procura, o que me encontrar e faça sentido, o que você quer, não sei, mas sei o que não quero mais.
Estou passando por essa fase de insegurança e investimento de autoconfiança. Não é fácil, porque muitas vezes, a questão de sobrevivência e dignidade berra e nos faz segurar o freio da liberdade e experimentação, mas às vezes, arriscar também pode trazer novas possibilidades mais coerentes e se não? A gente vai se fazendo pelo caminho. Como costumo dizer, pronta, só no fecho, tô em processo... ;)
Obrigada pela partilha!